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Textos seleccionados do trabalho intitulado: “Fincar os Pés no chão”
Autor: Victor Barros, Mestrandoem História Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal. Ano (2006).
OBS: texto utilizado para fins didácticos com a permissão do autor
CLARIDADE: CONTEXTUALIZAÇÃO
Remonta a Março de 1936, quando uma grupo de intelectuais, que já se vinham reunindo desde há algum tempo, decidiram, sob o princípio fincar os pés na terra, dar à estampa um projecto cultural e literário consubstanciado materialmente numa revista denominada Claridade revista de arte e letras. Esta teve como principais figuras fundacionais Jorge Barbosa, Manuel Lopes, Baltasar Lopes e outros colaboradores iniciais, como Pedro Corsino de Azevedo e João Lopes.
O centro editorial da revista era a cidade do Mindelo (Ilha de São Vicente – Cabo Verde) e teve como primeiro director Manuel Lopes. Ao longo da sua existência o projecto Claridade produziu um total de nove números mas sem qualquer regularidade ou periodicidade. No primeiro ano foram publicados dois números, sendo o primeiro em Março e o segundo em Agosto de 1936. Os restantes números saíram entre Março de 1937 e Dezembro de 1960[1]. A cada número a revista aumentava de volume de páginas, como puro retrato do aumento do número de colaboradores.
Em termos de conteúdos, a Claridade oscilava entre poesia, ensaio, recolha etnográfica, literatura, etc. Isto é, “essencialmente literária nos seus três primeiros números, nem por isso deixam de nela aparecer notas que apontam não só às características sociais de Cabo Verde mas também às suas raízes humanas e telúricas, conferindo ao dialecto de Cabo Verde uma presença de honra. Com efeito, logo nos dois primeiros números se publicam na página de rosto poemas em crioulo…”[1]. Há que realçar que a publicitação do crioulo constituía uma forma de manifestação do regionalismo claridoso na sua vertente linguística, como veremos mais adiante, uma vez que a Claridade via o crioulo como uma variante dialectal do português metropolitano.
O surgimento da Claridade foi por vezes “entendida como o arranque decisivo de uma literatura de alcance “nacional”, ou “regional” – talvez eufemismo necessário, dada a situação colonial então vivida”[2]. Isto é, era evidente que “uma tomada de consciência regional muito nítida se instala nos escritores de Cabo Verde, que decidem romper com os arquétipos europeus e orientar a sua actividade criadora para as motivações de raiz cabo-verdiana. Não é ainda uma posição anti-colonial. Não é ainda, nem nada que se pareça algo que tenha a ver com a ideia de independência política ou nacional”[3].
Independentemente da orfandade política, ideológica e combativa do projecto Claridade face à realidade colonial do arquipélago, o que não podemos subestimar e negligenciar é o marco da produção cultural e literária: primeiro, porque a Claridade, enquanto projecto literário, torna-se no núcleo importante das actividades intelectuais e literárias da intelligentsia da época. Do ponto de vista da literatura, a realidade arquipelágica (homem, terra, ambiente…) converte-se no objecto de descrição e de elaboração ficcionista. Por isso considera-se que “em termos simples, Claridade e o grupo «Claridade», ou os «claridosos», são sinónimos com os começos da literatura caboverdiana. E, ao contrário do caso da literatura em e de Angola e Moçambique nos anos 50 e 60, podemos já, nos anos 30, falar de uma literatura caboverdiana”[1]. Segundo, porque esta iniciação da produção literária manifestava-se através da elaboração de um discurso identitário para Cabo Verde. Discurso esse que pretendia representar e negociar o enquadramento civilizacional do arquipélago numa lógica de identificação (aproximação ou distanciamento) em relação às heranças ou reminiscências culturais e civilizacionais que estiveram na sua génese – africanas e europeias.
Temos que saber reconhecer que, apesar do estatuto de Cabo Verde enquanto colónia, o surgimento da Claridade representava duas vertentes contraditórias de uma mesma realidade. A primeira é a afirmação de uma consciência regional e da tentativa de descodificação das raízes culturais e da estrutura social mestiça, crioula caboverdiana; a segunda é a passividade da Claridade e a sua posição não combativa da situação e da dominação colonial. Muito embora, temos que ter alguma reserva e não ser tão categóricos em considerar que a afirmação de uma consciência requer necessariamente um sentido combativo, contestatário ou de luta[2].